Toda despedida é momento doloroso, mas sempre existe a esperança de um novo encontro. Ao mesmo tempo, sempre ficam na memória as lembranças de uma vida partilhada, de tantos momentos em que a vida foi dividida, nas alegrias, nas lutas. Muitas situações devem ter passado pela mente daqueles que nesta terça-feira estavam na missa celebrada em memória do bispo Pedro, como muitos o chamavam naquelas terras do nordeste do Mato Grosso. Nem só os que estavam presentes em Ribeirão Cascalheira, também aqueles que, impedidos pela pandemia, acompanhavam as celebração na transmissão pelas redes sociais.
O caixão no meio, e em volta um povo que o seguiu em vida e vai lembra-lo para sempre. Um corpo consumido pelos anos e pelo seu irmão parkinson, como o próprio Pedro chamava seu companheiro de vida por mais de 15 anos. Ele foi alguém que amou esse povo até entregar sua vida, pois como era cantado, prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão.
Pedro será lembrado, nem só na Prelazia de São Félix do Araguaia, como no mundo todo, pois “sua vida transbordava os horizontes, ia para além dos horizontes”, como dizia em sua homilia Dom Neri Tondello, bispo de Juína, querendo partilhar o que Dom Pedro significa, “não só para a Prelazia, mas para a Igreja do Brasil e do mundo”. De fato, os escritos e poemas de Casaldáliga, “cheios de coragem, cheios de inspiração”, já eram lidos pelo hoje bispo, quando ele era estudante de filosofia e teologia no Sul do Brasil.
Um diferencial na vida de Pedro foi que “ele aceitou ser pequeno, ficou sempre entre os pequeninos, pequeno nos deslocamentos, na total pobreza, na radicalidade de sua entrega”, atitudes com as que o bispo de Juína desenhava a vida de alguém que “se fazendo pequeno, ele assumiu os pequeninos, os últimos, e entre eles os povos indígenas, os peões”, lembrando de tantos que chegaram na região do Araguaia atrás de sonhos de melhora de vida, que nem sempre foram realizados.
O bispo de corpo franzino teve a capacidade de ser alguém que aos pequeninos “os carregava no colo, como um paizão, como um paizinho”. Segundo Dom Neri Tondello, “o seu exemplo, ecoa em nós essas palavras: quem vai defender os pobres, senão a Igreja”. Ele insistia em não esquecer o testemunho de vida e de fé de Dom Pedro Casaldáliga, de alguém que mostrou a fidelidade a Jesus Cristo, à Igreja e aos pobres.
A homilia do bispo tem sido um momento para agradecer pela vida de Dom Pedro, mas também de outros bispos. Ele lembrava de Dom Antônio Possamai, sepultado o ano passado, a quem definia como alguém “de uma envergadura mais ou menos parecida na causa da luta pelos pobres”. Na verdade, foram muitos os bispos que no Brasil comprometeram suas vidas nessas lutas, nessa defesa dos pobres, o que fez com que fossem perseguidos e ameaçados, inclusive dentro da própria Igreja, que tanto amavam e nunca duvidaram em servir.
O legado de Dom Pedro não acaba com sua morte, ele é uma semente, pois como insistia o bispo de Juína, “a sua profecia prossegue nos batizados que estamos aqui, a profecia deve continuar porque sem profecia a nossa espiritualidade fica estéril, perde força, perde a vitalidade, perde a capacidade de transformação do mundo”. Somos chamados a instaurar, segundo o prelado, “a civilização do amor, ela deve ser a nossa bandeira constante de filhos e filhas de Deus, batizados em Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Em suas palavras, Dom Neri afirmava que “queremos uma Igreja batismal, capaz da missão, capaz da comunhão, capaz da solidariedade, capaz da profecia”. São elementos que fizeram parte da vida de Dom Pedro, a quem constantemente, na beira do caixão, desde onde proferiu sua homilia, lhe agradecia por tudo o que ele fez. Diante disso, o bispo pedia aos presentes, mas também a toda a Igreja, “que fique em nós o compromisso de prosseguir esta missão tão bonita, tão árdua, mas também tão decidida, em favor do Reino, abraçando os últimos, os pequeninos”.
Esse compromisso foi assumido pela assembleia, presencial e virtual, na renovação da fé, daquela fé que sustentou a caminhada de Pedro, daquele compromisso com os mais pobres, sempre presente no bispo do Araguaia. No final das contas, como era cantado durante a comunhão, “receber a comunhão com este povo sofrido é fazer a Aliança com a causa do oprimido”, é um compromisso de lutar pela justiça para que o outro tenha nome, é estar em comunhão com Jesus Crucificado, ser preso, marginalizado, sonhar com um tempo novo, os sonhos que sempre estiveram presentes na vida e lutas de Pedro.
Mesmo tendo fé, mesmo sabendo que aquele que morre, está vivo, ressuscitado, a morte sempre é momento de dor, que gera tristeza e dificuldade em aceitar, como dizia a mensagem da família Casaldáliga, que desde Balsareny, sua terra natal, acompanha esse momento. Não é só sua família que se sente órfã e sentirá sua falta, muita gente, sobretudo os esquecidos, que tiveram ele sempre como esse paizão, como esse paizinho.
Após sua última visita ao Santuário dos Mártires da Caminhada, o lugar que ele tanto amou, seu corpo continua sua viagem de volta a casa, na beira do Araguaia. Ali vai ser devolvido ao útero da Mãe Terra, no meio de um peão e uma prostituta, no meio daqueles que ele sempre tanto amou, inclusive os considerando como gente muito mais importante que sua própria vida. Eles eram sua causa, a Causa do Reino, a Causa de Deus.